Como se sabe, era minha convicção que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa não viesse a dar luz verde a tudo o que lhe havia sido enviado pela oposição ao Governo de António Costa, ao redor da tal lei-travão, que este último órgão de soberania entendia estar a ser violada. Bom, a verdade é que assim não entendeu o Presidente da República.
Objetivamente, mesmo para quem não é jurista, a atual decisão do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa parece estar marcada por uma evidente criatividade constitucional. Mas vejamos o que poderá estar aqui em jogo.
Em primeiro lugar, torna-se agora evidente que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa terá pretendido mostrar a sua simpatia e a sua compreensão para com os portugueses-alvo dos desejos do Governo, indo ao encontro dos da coligação negativa que juntou os seus esforços, por razões completamente diversas, contra o Governo de António Costa.
Em segundo lugar, começam a surgir as primeiras e indiscutíveis nuvens por parte do Presidente da República nas suas relações com o Governo de António Costa. Cada um de nós admitirá, com toda a naturalidade, que esta decisão de agora nunca teria visto a luz do dia no seu primeiro mandato. É um primeiro sinal de alerta objetivo, já indubitável…
Em terceiro lugar, o Presidente da República até deixa ao Governo uma possível saída para um pedido de apreciação da constitucionalidade, utilizando o mecanismo de apreciação sucessiva. Todavia, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa diz também, na sua explicação sobre a decisão tomada, que o problema da constitucionalidade não se coloca aqui. Ora, esta é a situação para que chamei a atenção dos leitores ao tempo da sua primeira corrida presidencial: sendo professor de Direito Constitucional, até deputado constituinte, tendo já referido, positivamente, que um problema de constitucionalidade não se coloca aqui, terá o Tribunal Constitucional, à luz do que se conhece do modo jurídico português de olhar as coisas, a capacidade de desdizer o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa? Muito sinceramente, não creio. Nunca acreditei, já no tempo daquela sua corrida presidencial.
Em quarto lugar, a tal criatividade parece ser a seguinte: os diplomas ora promulgados não sofrem de inconstitucionalidade por incidirem sobre montantes ainda cabalmente desconhecidos, pelo que compete ao Governo acomodar as necessidades derivadas dos diplomas em função da essencial não violação da tal lei-travão. Objetivamente, isto constitui-se numa atitude deveras criativa. Por ser esta a minha interpretação, exponho aqui o que entendo ser um paralelo formal, mas a título de exemplo.
Imagine o leitor que a globalidade da oposição parlamentar aprovava um diploma consagrando a pena de morte. Seria o mesmo inconstitucional? Bom, deitando mão da tal criatividade, poderia sempre escrever-se o seguinte, a fim de justificar a promulgação de um tal diploma: não existe aqui um problema de constitucionalidade, dado que o Governo poderá sempre gerir a aplicação da referida pena em função das suas disponibilidades orçamentais com vista à dotação dos meios técnicos essenciais à materialização da pena de morte, e que o tribunal poderá sempre mudar a pena em questão. Continuando a brincar de um modo criativo, se a pena fosse por fuzilamento, só seria inconstitucional se existisse dinheiro para as balas a serem utilizadas, situação cuja recusa estaria, sempre, nas mãos do Governo.
E, em quinto lugar, estas promulgações abrem um precedente arriscado, que é o contrário do que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa aponta como podendo conduzir a crises perigosas para a estabilidade da vida do País, referindo constituir um caminho a não seguir… A partir de agora, sobretudo depois de extirpada a COVID-19, a oposição passa a dispor de um mecanismo destinado a derrubar o Governo, bastando-lhe propor gastos sem limite, mesmo sabendo que o País irá ao charco com tais medidas.
Depois do que agora se pôde ver, recomendo que se lei o meu texto, EU BEM AVISEI…, surgido pelo meio do primeiro mandato do Presidente da República. E também convém não esquecer as certeiras palavras de Pedro Passos Coelho, ainda Primeiro-Ministro, quando recusou a escolha de um qualquer catavento político. Nunca tendo apoiado a sua política, muito menos os objetivos estratégicos da mesma, Pedro Passos Coelho aceitou em cheio neste seu histórico comentário.