Há já umas duas décadas que escrevi que a ordem jurídica portuguesa é uma borracheira. De resto, não é preciso ser-se jurista para que nos demos conta de tal realidade, uma vez que, com frequência quase ilimitada, o tudo pode passar, num ápice, a ser nada.
Quando surgiu a ideia do Papa Francisco de que fossem criadas comissões diocesanas com a finalidade de operar o levantamento de quanto pudesse ter tido lugar no domínio dos abusos sexuais, de pronto sorri, dado que tais comissões, com elevada probabilidade, a quase nada conduziriam. E se é verdade que em vários países se conseguiram resultados muito próximos da realidade global em causa, acompanhados dos correspondentes castigos e indemnizações, já em Portugal o que logo sobreveio foi uma reação de desnecessidade de tais estruturas. Bom, foi uma decisão taticamente incorreta.
Percebida a lição, lá nos surgiram as tais comissões, embora um conhecimento capaz da nossa realidade cultural logo permitisse perceber que tais comissões a nada conduziriam. E esta era uma conclusão simples, até por dizer respeito à nossa estrutura cultural, embora também aquela chamada do caso dos Arautos do Evangelho ao controlo centralizado de Francisco tenha permitido perceber que o assunto estava ali mesmo a receber o seu funeral.
No entretanto, lá nos surgiu a tal comissão independente, que tem trabalhado nos casos em apreciação. E se é verdade que mais de três centenas de testemunhos foram já recebidos, a verdade é que dá já para perceber que tudo irá desembocar, no final, em quase nada. Porventura, mesmo nada.
Para mim, esta realidade foi logo percebida com as palavras iniciais de Álvaro Laborinho Lúcio, ao tempo da apresentação pública da comissão que tem vindo a desempenhar as suas funções. Simplesmente, ao redor da mais recente notícia de certo caso de alegado abuso sexual, de que tiveram conhecimento os cardeais José Policarpo e Clemente, eis que nos surgiu, qual complemento do inicialmente exposto pelo conselheiro, a explicação debruada de ontem à noite, na CNN Portugal, do causídico Manuel Magalhães e Silva. Para mim, tratou-se apenas de um modo de dizer esta ideia simples: esqueçam!
Perante toda esta realidade, interrogo-me hoje sobre o valor daquela velha conversa ao redor dos Ballets Rose, que teria sido abafada, o que nem foi o caso. Até porque não faltaram julgamentos e condenações, talvez com a exceção de certo governante. Até concidadãos brasonados, e de grande gabarito, não escaparam a responder perante os Tribunais. E o mesmo se pode dizer daquele caso em que certo médico, com a sua mulher e uma cunhada, foram atacados em Carcavelos, em certa noite: os responsáveis, da mais alta estirpe social e política, foram descobertos, presentes a juízo e condenados. De modo que pergunto agora ao leitor: como acha que irá terminar esta saga da tal comissão independente, sendo que já nem temos Salazar, o Estado Novo e a PIDE?
Por fim, uma nota sobre certa entrevista recente de Daniel Sampaio, que explica este caso com gente da Igreja Católica Romana: a Igreja ocultou muitas situações, mas todas as instituições, grupos e, sobretudo, famílias o fazem. É, pois, uma realidade universal, por isso quase impossível de combater com resultados capazes, pelo que é enorme a relatividade do correspondente valor. Digo agora eu: é terrível, mas é sempre assim e por todo o lado… Mais uma vez e de um modo simples: esqueçam!
Em contrapartida, eu tenho uma ideia: as vítimas em causa que recorram aos Tribunais Internacionais, expondo as suas queixas, ou ficará tudo em nada. E seria bom que a Ordem dos Advogados, ou os escritórios de maior nomeada, se mostrassem pro bono neste domínio. E também que a tal comissão independente envie cópias do seu trabalho às instituições internacionais mais representativas. Mas ir-se-á por aqui? Ah, claro que não! É que nós estamos em Portugal…