Como é usual nas designadas democracias, prosseguem, com a singularidade que é a nossa, as negociações destinadas a encontrar as soluções que permitam que seja aprovado o Orçamento do Estado para 2022. Não sendo economista, consigo, ainda assim, assumir duas posições: por um lado, este documento constitui uma melhoria em relação ao anterior, mesmo aos anteriores e comporta possibilidades potenciais de melhorar a vida futura dos portugueses; e, por outro lado, o Governo de António Costa, suscitado como foi, ao longo dos anos recentes, pelos partidos da Esquerda, bem poderia ter ido mais longe em domínios considerados, objetivamente, essenciais.
Há muito tomei por certo que a queda de votos na CDU não foi determinada pela existência da Geringonça, nem pelas aprovações dos tais documentos atrás referidos. Este falso argumento, de facto, vai sendo esgrimido pela grande comunicação social, mas destina-se a tentar criar a divisão no seio do PCP e dos restantes partidos da Esquerda. E, ao que se noticia, parece que há até quem enfie um tal barrete.
No momento em que escrevo o presente texto parece que o Bloco de Esquerda irá votar contra esta proposta do Governo, o que, a fazer um vencimento mais amplo, lançará os portugueses na voracidade da retoma das soluções que se puderam viver com o trio político Cavaco-Passos-Portas. Sobretudo se, por um terrível azar, a distração dos eleitores conduzir Paulo Rangel à liderança do PSD. Porque se Rui Rio está longe de ser um político dominador das artes retóricas, a verdade é que Rangel será sempre a retoma dos que boicotaram a ação política daquele e mais, ainda, das velhas receitas neoliberais de Cavaco-Passos-Portas. Basta que olhemos para quem esteve na respetiva apresentação, ou na tomada de posse de Carlos Moedas.
Há um dado que não se pode colocar de lado: se a Direita – portanto, também a Extrema-Direita – voltasse hoje ao poder, ao que se assistiria, de imediato, seria ao pôr um fim no Estado Social, mas também fortalecendo a exploração dos que têm que trabalhar para patrões sem objetivas preocupações sociais. Não seria algo inovador, que nunca tenha sido visto. Pelo contrário: os portugueses já viram e experimentaram as soluções do terno político Cavaco-Passos-Portas. E não devem os portugueses deixar-se levar por conversas de aparência razoável, porque as mudanças operadas ao tempo daquele terno destinavam-se a ficar para sempre. Constituíam uma mudança político-constitucional de fundo, ainda na peugada da terrível digestão política, nunca terminada, ao redor da Revolução de 25 de Abril e da Constituição da III República.
Claro está que o PCP não é o Bloco de Esquerda. Tem uma história de cem anos. Foi capaz de compreender que, malgrado tudo, seria sempre preferível a vitória de Mário Soares à de Freitas do Amaral, dado que esta poria um fim naquela revolução e naquele documento histórico. Infelizmente, se tudo tivesse dependido do Bloco de Esquerda naquele tempo – não existia ainda –, lá teria Diogo Freitas do Amaral sido eleito, de pronto se seguindo o fim da Revolução de Abril e da sua Constituição da III República.
Impõe-se aos portugueses, pois, compreender que quem prefere, taticamente, a Direita – portanto, também a Extrema-Direita – ao PS de António Costa – não é, claro está o socialismo! –, está-se nas tintas para a Revolução de 25 de Abril e, lamentavelmente, para os portugueses. Já se viu isto uma primeira vez, tendo podido perceber no que tudo esteve à beira de poder descambar. Hoje, indubitavelmente, escolher Bloco de Esquerda é optar pela Direita – logo, também, pela Extrema-Direita – em nome de uma hipercoerência que esquece a força histórica envolvente no mundo atual. É como recitar a melhor poesia, mas no Inferno.
O PCP tem cem anos e uma imensidão de páginas históricas. Não é, claro está, um qualquer Bloco de Esquerda de gente culta e bem pensante, mas que vive, cabalmente, à revelia da realidade política que varre hoje o mundo. O PCP não pode tornar-se num partido de burguesotes, mas que num ápice brande uma doutrina de ação política hoje inaplicável, esquecendo a realidade e as pessoas.
Depois de ter levado uma vida de 74 anos a ler, a estudar e a dialogar, é para mim inimaginável que o PCP pudesse deitar por terra o que até hoje se conseguiu, também graças a si e aos restantes partidos da Esquerda, em favor de uma doutrina e das suas consequências, mesmo que justas. Olhemos, com toda a atenção, a nossa grande comunicação social, porque ela mostra, cabalmente, a quem interessa o fim do atual Governo de António Costa. E Pedro Nuno Santos que olhe, com atenção, para o que se está a passar com o Bloco de Esquerda, concluindo como é simples: é uma força política com que o PS deve imaginar trabalhar. É apenas o recitar da melhor poesia, mas no Inferno…